Entrevista especial com Rosana Miranda.
A empresa canadense “pretende se instalar
em uma das regiões mais sociobiodiversas do mundo, e que já sofre com os
impactos irreversíveis causados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte”,
diz a pesquisadora.
Ilha da Fazenda, uma das comunidades ribeirinhas
que pode ser impactada pela mineradora Belo Sun Por: Patricia Fachin | 12 Abril
2021.
O projeto de mineração Volta Grande da
empresa canadense Belo Sun, previsto para ser instalado na cidade vizinha de
Altamira, Senador José Porfírio, no Pará, na Volta Grande do Xingu, “prevê a
extração de 74 toneladas de ouro em 20 anos de operação – entre construção,
exploração e descomissionamento”, diz Rosana Miranda. O empreendimento também
prevê, segundo ela, “2.100 empregos diretos em fase de implantação e 526 na
fase de operação, R$ 60 milhões em royalties de mineração em 12 anos, cerca de
R$ 130 milhões em impostos durante o período de instalação e R$ 55 milhões ao
ano quando em operação”. Apesar de o montante parecer significativo, “a
mineração de ouro gera um efeito apenas temporário nos municípios, e não é
capaz de alterar indicadores importantes como saúde, educação e PIB per
capita”, adverte na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto
Humanitas Unisinos - IHU.
Rosana Miranda, integrante da ONG Amazon
Watch, que faz parte de um grupo de organizações que vêm denunciando a inviabilidade
socioambiental do projeto Belo Sun, menciona os efeitos que o projeto de
mineração poderá causar na região, especialmente por estar muito próximo de
outro grande empreendimento, Belo Monte, que gerou inúmeros problemas
socioambientais em Altamira e na Volta Grande do Xingu. “Há graves lacunas no
processo de licenciamento do projeto da Belo Sun, que oferece informações
contraditórias e minimiza os impactos de sua operação. Os primeiros Estudos de
Impacto Ambiental da Belo Sun foram começados em 2009, quando a instalação de
Belo Monte sequer havia sido iniciada. Não há, portanto, informações
suficientes por parte dos estudos de Belo Sun com relação ao impacto cumulativo
da sua operação com o que já é causado por Belo Monte. Esses estudos,
finalizados e apresentados em 2012, trazem informações radicalmente diferentes
do Estudo de Viabilidade que a empresa divulgou em 2015 para seus
investidores”. Entre os riscos apontados por pareceres técnicos feitos por
pesquisadores independentes, Rosana destaca a contaminação do rio Xingu devido
ao uso de “grandes quantidades de cianeto e de outros processos químicos” e a
“alta probabilidade de falha da barragem, cujo rompimento poderia resultar em
um volume de aproximadamente 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos
atingindo o rio Xingu em apenas sete minutos”.
Na entrevista a seguir, ela também critica
a falta de consulta prévia às comunidades tradicionais de agricultores,
ribeirinhos e indígenas não aldeados sobre o projeto. “Consultas servem para
que os conhecimentos e opiniões da comunidade possam ser incorporados ao
projeto, para que possam ser contempladas outras alternativas, e feita uma
análise equilibrada da viabilidade da empreitada. Não é o caso do projeto Volta Grande, e sendo
assim, não consideramos válidas todas as decisões que avançaram o projeto sem
que ainda houvesse sido feita a consulta”, afirma.
Rosana Miranda é mestre em Estudos de
Desenvolvimento pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais e de
Desenvolvimento - IHEID, de Genebra, na Suíça, e especialista em cooperação
internacional, tendo trabalhado na área nos últimos oito anos com foco na
defesa dos direitos territoriais e na promoção da justiça climática, econômica
e de gênero. É assessora de campanhas para o Brasil da Amazon Watch.
IHU On-Line - A senhora participa de um
grupo de organizações que denuncia a inviabilidade socioambiental do projeto
Belo Sun. Por que o projeto é inviável socioambientalmente?
Rosana Miranda - Sim, há alguns anos a
Amazon Watch tem acompanhado os acontecimentos na Volta Grande do Xingu, ainda quando
organizações da sociedade civil e lideranças indígenas tentavam impedir o
empreendimento de Belo Monte. Com a chegada da Belo Sun, nos unimos a
organizações da sociedade civil que vêm denunciando a inviabilidade
socioambiental do projeto, como a Rede Xingu+, o Movimento Xingu Vivo para
Sempre, o Instituto Socioambiental - ISA, a International Rivers, a Above
Ground, a MiningWatch Canada e a Associação Interamericana de Defesa do Meio
Ambiente - Aida.
Como parte desta coalizão, nós temos sim
apontado a inviabilidade do projeto. A mineradora pretende se instalar em uma
das regiões mais sociobiodiversas do mundo, e que já sofre com os impactos
irreversíveis causados pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. É
importante lembrar que Belo Monte é a maior obra de infraestrutura da Amazônia
e uma das maiores hidrelétricas do mundo. O passivo de Belo Monte, que não gera
energia como se prometeu, inclui a redução de até 80% de vazão no rio Xingu, o
desmatamento e as invasões em terras indígenas e áreas protegidas, e a perda
dos meios de vida de milhares de comunidades, algumas até hoje esperando pelo
reassentamento. Isso por si só já deveria gerar um alarme com relação à
instalação de um empreendimento de tão alto impacto como a mineração de ouro.
Lacunas no processo de licenciamento.
Mas além disso, há graves lacunas no
processo de licenciamento do projeto da Belo Sun, que oferece informações
contraditórias e minimiza os impactos de sua operação. Os primeiros Estudos de
Impacto Ambiental da Belo Sun foram começados em 2009, quando a instalação de
Belo Monte sequer havia sido iniciada. Não há, portanto, informações
suficientes por parte dos estudos de Belo Sun com relação ao impacto cumulativo
da sua operação com o que já é causado por Belo Monte. Esses estudos,
finalizados e apresentados em 2012, trazem informações radicalmente diferentes
do Estudo de Viabilidade que a empresa divulgou em 2015 para seus investidores.
Uma articulação de pesquisadores
independentes apoiados pela nossa coalizão publicou três pareceres técnicos em
que questionam os dados apresentados por Belo Sun em seu EIA-Rima [Estudo e
Relatório de Impacto Ambiental]. Os estudos apontam um enorme risco de
contaminação do rio Xingu devido à possível infiltração de fluidos poluentes,
ao uso de grandes quantidades de cianeto e de outros processos químicos. O
cianeto em particular, pode ser letal tanto para a fauna aquática quanto para
as pessoas. Além disso, há uma alta probabilidade de falha da barragem, cujo
rompimento poderia resultar em um volume de aproximadamente nove milhões de
metros cúbicos de rejeitos tóxicos atingindo o rio Xingu em apenas sete
minutos. Todos esses pareceres técnicos recomendaram a rejeição do projeto por
parte das autoridades brasileiras, algo que foi endossado tanto pela Defensoria
Pública do Estado do Pará quanto pelo Ministério Público Federal. Isso não
impediu a Secretaria de Meio Ambiente do Pará de expedir uma licença de
instalação para o projeto em 2017, num procedimento que consideramos pouco
transparente e irregular, sem quaisquer considerações com as populações da
região.
IHU On-Line - Pode nos explicar em que
consiste o projeto da Belo Sun? Quanto minério a empresa pretende extrair e por
quanto tempo?
Rosana Miranda
- O projeto Volta Grande da mineradora canadense Belo Sun prevê a extração de
74 toneladas de ouro em 20 anos de operação – entre construção, exploração e
descomissionamento. Como o nome sugere, ele está localizado na Volta Grande do
Xingu, próximo a três Terras Indígenas e a cerca de 50 quilômetros da
Hidrelétrica de Belo Monte. Para obter essa quantidade de ouro, terá que
extrair alguns milhões de toneladas de rocha das principais minas previstas no
projeto. Ele prevê também o armazenamento permanente de 35,43 milhões de metros
cúbicos de rejeitos de minério e água por trás de uma barragem de rejeitos de
44 metros de altura às margens do rio Xingu.
IHU
On-Line - Por que a empresa canadense tem interesse em se tornar a maior
mineradora a céu aberto no Brasil e por que escolheu especificamente a Volta
Grande do Xingu para instalar esse empreendimento?
Rosana Miranda - A mineração não é
novidade na região, o garimpo artesanal de ouro existe por ali desde o início
do século XX, e a chegada das primeiras mineradoras na região remonta à década
de 1970. O interesse da Belo Sun na Volta Grande do Xingu também é antigo,
desde quando a empresa tinha outro nome e composição distinta da de hoje. O
interesse da empresa, claro, deve-se principalmente ao que ela considera como o
potencial minerário na região, segundo eles, o maior depósito de ouro no
Brasil. Além disso, a própria empresa aponta como uma das vantagens a região
estar localizada no Pará, segundo estado com maior atividade de mineração do
país, e com legislação “amigável”, segundo o próprio site da empresa. Por fim,
Belo Sun considera como extremamente vantajosa a localização próxima a Belo
Monte, uma área com “infraestrutura excelente”, onde ela terá acesso à energia
barata para sua operação. Ou seja, o que consideramos como um dos principais
riscos do empreendimento, a empresa enxerga como oportunidade de reduzir
custos.
Diferentemente do que as empresas e
governos gostam de propagandear, a mineração de ouro gera um efeito apenas
temporário nos municípios, e não é capaz de alterar indicadores importantes
como saúde, educação e PIB per capita - Rosana Miranda.
IHU On-Line - Quais são as contrapartidas
que a empresa oferece ao Estado brasileiro? O que tem sido negociado entre as
partes acerca desse empreendimento?
Rosana Miranda - Segundo a Secretaria de
Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará, o projeto apresenta a
previsão de 2.100 empregos diretos em fase de implantação e 526 na fase de
operação, R$ 60 milhões em royalties de mineração em 12 anos, cerca de R$ 130
milhões em impostos durante o período de instalação e R$ 55 milhões ao ano
quando em operação. Parece uma soma significativa, mas é importante lembrar que
somente em 2020 a indústria da mineração no Brasil faturou R$ 126 bilhões, em
plena pandemia. Somente o que uma mineradora como a Vale distribuiu para seus
acionistas no ano passado – R$ 12 bilhões – já supera os valores anunciados
pelo governo do Pará sobre a arrecadação do projeto Volta Grande. No mais, um
estudo importante do Instituto Escolhas mostra que, diferentemente do que as
empresas e governos gostam de propagandear, a mineração de ouro gera um efeito
apenas temporário nos municípios, e não é capaz de alterar indicadores
importantes como saúde, educação e PIB per capita.
Belo Sun ainda não realizou a Consulta
Prévia, Livre e Informada aos povos indígenas, e nem às demais comunidades
tradicionais da Volta Grande do Xingu - Rosana Miranda.
IHU On-Line - Durante a construção de Belo
Monte, houve inúmeras disputas jurídicas acerca da implementação da obra,
especialmente porque alegava-se que as empresas envolvidas no projeto não
cumpriam a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre o
direito à consulta prévia aos povos indígenas, como determina a Constituição de
88. No caso de Belo Sun, como está esse processo?
Rosana Miranda - Belo Sun ainda não
realizou a Consulta Livre, Prévia e Informada - CLPI aos povos indígenas, e nem
às demais comunidades tradicionais da Volta Grande do Xingu, em que pese já
estarmos há quase uma década desde que os primeiros estudos sobre a viabilidade
do projeto foram apresentados. As etapas iniciais da análise de impacto
ambiental de Belo Sun foram realizadas sem qualquer ciência das comunidades
indígenas, e nem dos órgãos competentes, como a Funai – a primeira reunião de
apresentação do projeto aos indígenas foi realizada apenas em dezembro de 2014.
A princípio, a empresa alegou não caber
processo de CLPI por se tratar de projeto com uma distância maior de terras
indígenas do que os 10 quilômetros definidos por uma portaria no tema. A empresa
inclusive ignorou que os limites de uma das terras indígenas afetadas, a
Paquiçamba, foram alterados em 2012, e disputou essas informações em todos os
momentos, até que foi obrigada na Justiça a realizar a consulta prévia. Então
Belo Sun entende o direito à consulta como um gesto de cooperação da parte
dela, e não uma obrigação, e os órgãos licenciadores trataram esse direito com
enorme irresponsabilidade, endossando essa atitude da empresa. Também não houve
consulta às comunidades tradicionais de agricultores, ribeirinhos e indígenas
não aldeados, apesar de a empresa já ter construído uma sede administrativa, e
parte do projeto, dentro do território de uma das comunidades afetadas, a Vila
da Ressaca.
Por essas razões, a Justiça suspendeu a
Licença de Instalação do projeto em 2017, porque a empresa não havia realizado
os estudos sobre os impactos nas comunidades indígenas de forma satisfatória,
nem cumprido a exigência de realização de um processo de Consulta Livre, Prévia
e Informada. E essa é uma das principais razões pelas quais a coalizão da qual
a Amazon Watch faz parte pede pela anulação de todo o processo de licenciamento
do projeto. Não faz sentido consultar as comunidades após conceder diversas
permissões à empresa. Esse tipo de consulta, realizado depois que já há uma
decisão favorável ao projeto, esvazia os direitos das comunidades. Consultas
servem para que os conhecimentos e opiniões da comunidade possam ser
incorporados ao projeto, para que possam ser contempladas outras alternativas,
e feita uma análise equilibrada da viabilidade da empreitada. Não é o caso do
projeto Volta Grande, e sendo assim, não consideramos válidas todas as decisões
que avançaram o projeto sem que ainda houvesse sido feita a consulta. A Aida
lançou recentemente um estudo detalhado sobre o processo de análise de impacto
ambiental de Belo Sun, que é um importante recurso para refletir sobre essa
questão da CLPI do projeto Volta Grande.
Belo Sun entende o direito à consulta como
um gesto de cooperação da parte dela, e não uma obrigação, e os órgãos
licenciadores trataram esse direito com enorme irresponsabilidade, endossando
essa atitude da empresa - Rosana Miranda.
IHU On-Line - Como as comunidades
indígenas da Volta Grande do Xingu têm se posicionado acerca do projeto de Belo
Sun? Há unanimidade ou divergências acerca de qual posicionamento adotar?
Rosana Miranda - As comunidades
ribeirinhas da Volta Grande do Xingu, área de impacto do projeto de mineração,
estão totalmente desconsideradas nesse processo da consulta e não têm ocorrido
discussões sobre impacto e ações de mitigação e/ou compensação. Assim como
ocorreu em Belo Monte, essas comunidades ribeirinhas foram apagadas do processo
de licenciamento ambiental de Belo Sun. Em relação aos povos indígenas, existem
pelo menos duas situações. De um lado, a ausência de posicionamento das
instituições licenciadoras (Funai e Semas) em relação a quatro pareceres
independentes incluídos no processo que questionam, dentre outras coisas, a
viabilidade técnica do empreendimento tal como ele se apresenta no componente
indígena do Estudo de Viabilidade Ambiental. As informações apresentadas por
esses pareceres não podem ser ignoradas no processo de licenciamento, seja com
os povos indígenas ou com as comunidades ribeirinhas. Além disso, de outro
lado, existem outras comunidades indígenas na região da Volta Grande do Xingu
que pedem para serem incluídas no processo de licenciamento e da Consulta
Livre, Prévia e Informada. Essas comunidades não foram, até o momento, incluídas
nesse processo.
Importante ressaltar que os Juruna da
Terra Indígena Paquiçamba mandaram carta para a Funai em dezembro de 2020
dizendo que não abrem mão do protocolo de consulta que afirma que todas as
reuniões devem ser presenciais e que só as fariam quando todos os indígenas
estivessem vacinados. Afirmam categoricamente que não aceitam reuniões virtuais
para falar sobre os impactos de Belo Sun e não aceitariam reuniões presenciais
antes de serem todos vacinados.
Os Juruna da Terra Indígena Paquiçamba
mandaram carta para a Funai em dezembro de 2020 dizendo que não abrem mão do
protocolo de consulta que afirma que todas as reuniões devem ser presenciais e
que só as fariam quando todos os indígenas estivessem vacinados - Rosana
Miranda.
IHU On-Line – Mas recentemente, em meio à
crise sanitária, divulgou-se a notícia de que a Funai havia autorizado a
realização de uma reunião presencial de representantes da mineradora com
indígenas Arara da Volta Grande do Xingu e Paquiçamba, em Altamira, para
apresentação e validação de seus estudos de impacto ambiental. Como avalia essa
decisão? O encontro aconteceu? O que foi tratado?
Rosana Miranda - Para a coalizão é
inaceitável que a Funai e a Belo Sun planejem reuniões presenciais no momento
que o Brasil vive com relação à pandemia. Neste momento, as autoridades
brasileiras devem garantir a proteção dos povos indígenas e solucionar as
graves deficiências técnicas do projeto. Autorizar reuniões presenciais deixa
claro de que lado estão a Funai e o governo brasileiro: o das grandes
mineradoras. O processo de consulta
prévia, livre e informada é um direito das comunidades indígenas, não uma
obrigação imposta à revelia de sua saúde e segurança. Essa tentativa de avançar
com o processo de consulta é mais uma movimentação da Belo Sun para apressar o
processo e silenciar as evidências de que esse projeto é inviável técnica e
ambientalmente.
Felizmente, graças à mobilização de
organizações parceiras para que o caso ganhasse repercussão na imprensa, e uma
recomendação contrária da Defensoria Pública da União no Estado do Pará, a
Funai voltou atrás e afirmou que não havia autorizado tais reuniões, e que
nenhuma consulta presencial seria realizada até que se pudesse garantir a
segurança sanitária dos povos indígenas envolvidos.
O Programa Mineração e Desenvolvimento -
PMD, lançado por Bolsonaro e Albuquerque, foi, na prática, literalmente ditado
por associações representativas do setor mineral - Rosana Miranda.
IHU On-Line -
Segundo notícias da imprensa, neste mês ocorreu a convenção do Prospectors and
Developers Association of Canada - PDAC, encontro anual que reúne grandes
investidores e mineradoras do Canadá para apresentação de oportunidades de
negócios no setor para as próximas décadas. O ministro de Minas e Energia,
Bento Albuquerque, enviou uma mensagem aos participantes do evento, através da
qual disse que o governo brasileiro está determinado a expandir o acesso aos
recursos minerais no país. Como vê essa declaração? O que ela sinaliza a longo prazo?
Rosana Miranda - Não é a primeira vez que
o ministro faz um aceno desse tipo. No ano passado, o Brasil também esteve no
PDAC – sendo inclusive um dos poucos países a patrocinar o evento – e a
mensagem era a mesma: abrir definitivamente as fronteiras do Brasil às
mineradoras. Mas de fato, analisando a fala do ministro no evento deste ano,
ela é bastante escandalosa em diversos pontos, e passou batida pela imprensa
nacional. Em primeiro lugar, ao falar do esforço do governo brasileiro em
elevar a mineração à categoria de atividade essencial para que pudesse
continuar operando em plena pandemia, ele desrespeita as centenas de milhares de
vítimas da Covid-19 no Brasil, e ignora que a mineração foi a responsável por
surtos em Minas Gerais e no Pará – inclusive com riscos para comunidades
indígenas próximas às áreas de mineração que foram continuamente expostas ao
vírus. Além disso, ao afirmar os esforços do governo para “aumentar o acesso” à
mineração em áreas até então restritas, ele inverte a lógica do princípio de
precaução com relação a uma atividade como a mineração, que é de alto impacto,
alto risco, e que deixa um passivo ambiental por décadas. Não é à toa que há
hoje uma série de restrições a essa atividade. Por isso vejo essa declaração
com muita preocupação. Ela vai na contramão do que o momento global exige –
devido tanto à pandemia quanto às discussões sobre como reduzir nossa pegada
ambiental diante das mudanças climáticas.
No entanto, é uma declaração totalmente em
linha com a proposta do governo Bolsonaro. Abrir as unidades de conservação e
as terras indígenas para o garimpo e a mineração industrial é uma das
prioridades do governo desde o primeiro dia, e ele vem atuando em todas as
frentes para que isso aconteça. Por um lado, temos os riscos representados por
legislações como o PL 191/2020, que retira de forma inconstitucional o direito
de veto dos povos indígenas com relação a atividades extrativas em seu
território e, por outro, as movimentações do governo federal para alterar e
suprimir tudo aquilo que for de sua competência em favor das mineradoras – o
que o diretor da Agência Nacional de Mineração - ANM chamou de “guilhotina
regulatória”. O Programa Mineração e Desenvolvimento - PMD, lançado por
Bolsonaro e Albuquerque, foi, na prática, literalmente ditado por associações
representativas do setor mineral.
É impressionante como mesmo com toda a
experiência negativa de Belo Monte, o discurso com relação ao projeto Volta
Grande, tanto pela Belo Sun como pelo governo do Pará, continua o mesmo -
Rosana Miranda.
IHU On-Line - Os pesquisadores continuam
denunciando e mostrando os efeitos da obra de Belo Monte não só para os
indígenas, como para toda a população de Altamira. Como o projeto Belo Sun
poderá piorar ainda mais a realidade local?
Rosana Miranda - Os grandes
empreendimentos sempre trazem consigo a promessa de geração de emprego e
melhora da qualidade de vida para os municípios. É impressionante como mesmo
com toda a experiência negativa de Belo Monte – que não só não resultou em uma
melhora nas condições de vida em Altamira como gerou o legado de ser um dos
municípios mais violentos do Brasil –, o discurso com relação ao projeto Volta
Grande, tanto pela Belo Sun como pelo governo do Pará, continua o mesmo. O
próprio diretor de Belo Sun disse isso em entrevista recentemente, sobre como o
projeto será um “motor econômico” para a região.
Destruição da vida comunitária.
O projeto de Belo Sun deve ser instalado
na cidade vizinha, Senador José Porfírio (PA), que também fica na Volta Grande
do Xingu. As comunidades atingidas ali já denunciaram, em diversas ocasiões,
que mesmo com a licença de instalação suspensa a mineradora nunca deixou de
trabalhar no local, tendo provocado a evasão de pelo menos metade da população
da comunidade da Vila da Ressaca, uma das comunidades mais fortemente atingidas
pelo empreendimento, e cuja remoção para outra localidade está nos planos da
empresa.
Então você tem aí toda uma desestruturação
da vida comunitária, com pessoas ou saindo por conta própria – pelo receio de
ficarem e serem removidas à força e sem compensação – ou sendo realocadas para
outros locais sem a infraestrutura necessária para recebê-las – algo que
aconteceu em Altamira, com impactos até hoje. Você tem o aumento da especulação
imobiliária na região, expulsando essas famílias também, sem nenhum plano
específico por parte de Belo Sun para mitigar esses impactos. A empresa
inclusive é acusada de realizar contratos irregulares de compra de terrenos em
áreas de assentamento na Vila da Ressaca, onde também construiu uma sede, tudo
isso antes mesmo de realizar o processo de consulta prévia das comunidades. Só
mais um capítulo da série de irregularidades que o projeto acumula. Então,
mesmo que fosse possível visualizar algum ganho social e econômico para as
comunidades como resultado do projeto, a postura da empresa até agora não condiz
com uma atuação que leve a isso. O que podemos esperar é a desestruturação de
comunidades ribeirinhas, rurais e indígenas, aumento da pobreza e da violência
(inclusive violência de gênero), mais problemas de saúde pela contaminação da
água e dos peixes, e isso não apenas para os municípios mais próximos.
As comunidades atingidas ali já
denunciaram, em diversas ocasiões, que mesmo com a licença de instalação
suspensa a mineradora nunca deixou de trabalhar no local, tendo provocado a
evasão de pelo menos metade da população da comunidade da Vila da Ressaca -
Rosana Miranda.
IHU On-Line - Como tem se dado a
exploração mineral ilegal em territórios indígenas? Em que terras existem
garimpos e quais são os efeitos da mineração em terras indígenas?
Rosana Miranda - O garimpo em terras
indígenas explodiu no último ano, trazendo a ameaça de uma escalada de
violência e de problemas para a saúde dos indígenas, além do impacto ambiental.
Um estudo lançado recentemente (25/03), feito a partir de imagens de satélite,
conduzido pelas organizações Hutukara e Seedume e o Instituto Socioambiental -
ISA, mostrou que o garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena Yanomami degradou
500 hectares, registrados entre janeiro e dezembro de 2020. Recomendo
acompanhar os estudos recentes da Rede Pró-Yanomami e Ye'kwana, do ISA e do
Instituto Escolhas, e as comunicações das Associações Yanomami e Munduruku para
mais informações sobre o garimpo em terras indígenas.
O garimpo em terras indígenas explodiu no
último ano, trazendo a ameaça de uma escalada de violência e de problemas para
a saúde dos indígenas, além do impacto ambiental - Rosana Miranda
IHU On-Line - Vários pesquisadores têm
defendido outros modelos de desenvolvimento para a Amazônia, a fim de barrar
megaempreendimentos e garantir a sustentabilidade social, ambiental e econômica
dos povos da floresta. Como você tem refletido sobre essa questão? O que seria
um modelo de economia justo, levando em conta as questões ambientais, sociais e
culturais da região?
Rosana Miranda - Nós, na Amazon Watch,
advogamos por um modelo centrado naquilo que chamamos de soluções lideradas
pelos povos indígenas. Ou seja, apoiamos e promovemos soluções alternativas
lideradas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais às mudanças
climáticas, extração de recursos naturais e desenvolvimento industrial.
O conhecimento, as culturas e as práticas
tradicionais dos povos indígenas contribuem há milênios para a gestão
sustentável e equitativa da Amazônia e de todo o planeta. Isso inclui apoiar
iniciativas lideradas por indígenas para gestão e manejo sustentável de
recursos florestais, agroecologia, energia solar e captação de água autônomas,
além de trabalhar em parceria para fortalecer líderes indígenas, especialmente
mulheres. Mas mais que tudo, significa apoiar essas comunidades e estar em
solidariedade com elas para que se cumpram seus direitos reconhecidos
internacionalmente com relação à soberania, autodeterminação e usufruto do
território.
Recentemente, a Organização das Nações
Unidas lançou um relatório que compilou mais de 300 estudos que mostram o papel
fundamental dos povos indígenas e tradicionais como guardiões das florestas e
outros ecossistemas sensíveis, e como a garantia do acesso à terra para essas
comunidades pode reduzir as taxas de desmatamento e a perda de biodiversidade,
evitando as emissões de CO2, por exemplo. Por essa razão, qualquer modelo de
economia justa passa por garantir o direito ao território aos povos indígenas e
comunidades tradicionais, não só no Brasil, mas no mundo todo.
Apoiamos e promovemos soluções
alternativas lideradas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais às
mudanças climáticas, extração de recursos naturais e desenvolvimento industrial
- Rosana Miranda.
Rosana Miranda - O projeto Volta Grande,
da Belo Sun, ainda está em processo de ser viabilizado, inclusive
financeiramente. Isso traz à tona um ponto importante que é o papel dos grandes
agentes do sistema financeiro internacional no financiamento de grandes obras e
das indústrias extrativas como a mineração. Essas empresas não poderiam
continuar expandindo a fronteira da exploração mineral na floresta se não fosse
pelas instituições que financiam isso. Por isso temos trabalhado na Amazon
Watch em campanhas para responsabilizar grandes atores financeiros globais,
como a BlackRock, o Citigroup, J.P. Morgan Chase, entre outros.
Os trilhões de dólares que essas
instituições administram, que vêm de centenas de milhares de pessoas – sejam
clientes de bancos ou investidores individuais –, representam uma ferramenta
poderosa de pressão sobre a indústria da mineração, para deixar claro que ela
não pode mais negligenciar suas responsabilidades ambientais e sociais. Por
isso, precisamos de uma discussão pública mais ampliada sobre Belo Sun, para
que atuais e potenciais investidores saibam que esta empresa pode estar
promovendo as últimas etapas do ecocídio do rio Xingu, e qualquer um que
invista ou apoie esse projeto de qualquer forma é cúmplice nessa destruição.
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